terça-feira, 2 de agosto de 2016

Alexandr Dugin - "O Estado nacional (grande ou pequeno) não é solução":



Cinco perguntas para Alexandr Dugin 
(Entrevista concedida ao site Democracy and Class Struggle):

1. Recentes ataques contra você, especialmente os de Glenn Beck nos Estados Unidos, o caracterizam como um racista-fascista. Eu entendo que você seja um comunista conservador (comunista nacionalista) e anti-racista: o meu entendimento está correto?

Eu certamente não sou um "racista-fascista". Eu não sou um fascista (não sou de Terceira Posição). Sou um anti-racista convicto. Eu odeio o racismo como parte da ideologia liberal, eurocêntrica e imperialista. A maioria dos ocidentais, incluindo os partidários dos direitos humanos, são racistas, na medida em que são universalistas e comungam com a visão de que a civilização ocidental moderna é o única padrão.

Defendo a pluralidade de civilizações e o fim do (ocidental) padrão universal do desenvolvimento social. Oponho-me firmemente a qualquer tipo de xenofobia e nacionalismo como uma construção burguesa, artificial e essencialmente moderna.

Eu não sou comunista, nem marxista, porque me recuso a aceitar o materialismo em todas as suas formas e porque nego o progresso. Assim, é muito mais correto descrever os meus pontos de vista através da Quarta Teoria Política e do Tradicionalismo e, no nível das relações internacionais, através da Teoria do Mundo Multipolar, baseada em uma visão pluralista da arquitetura do mundo com base no princípio dos grandes espaços (Grossraum) .

Me oponho ao capitalismo como um fenômeno essencial da modernidade. Acredito fortemente que a modernidade é absolutamente incorreta e que a Sagrada Tradição é absolutamente certa. Os EUA são a manifestação de tudo o que odeio: modernidade, ocidentalização, unipolaridade, racismo, imperialismo, tecnocracia, individualismo, capitalismo. Ele é, na minha perspectiva, a sociedade do Anticristo.

Os EUA me odeiam, usam de repressão, colocam-me sob sanções (por conta das minhas ideias!), me censuram, mentem e organizam a difamação em escala mundial (Glenn Beck é apenas uma pequena parte dela): mas eu aceito tudo isso com paciência. Se você se põe contra a modernidade, é lógico que a modernidade se colocará contra você.

2. Sua Quarta Teoria Política deve muito a teoria ontológica de Martin Heidegger, na qual o Ser é a Pátria (algo que permitiu uma realocação de neofascismo depois da Segunda Guerra Mundial com base no enraizamento do ser e não no "racismo científico" dos nazistas). Tal ontologia fornece apoio ideológico ao fascismo e ao neo-nacionalismo étnico.

Não posso classificar Heidegger como um "neofascista". Ele é simplesmente o maior pensador europeu do século XX. Eu avalio e considero que ele é o fundador da Quarta Teoria Política. Ele era decididamente antiliberal e anticomunista, mas também muito crítico em relação ao nacional-socialismo. Tento mostrar que ele lançou as bases para uma filosofia política totalmente nova e estou convencido de que precisamos redescobrir Heidegger, reler seus escritos para além de qualquer forma de classificação. Ele é uma espécie de profeta metafísico.

3.O nacionalismo cívico-burguês e o modelo escocês oferecem uma melhor maneira de lidar com as contradições sociais enquanto classe do que o nacionalismo étnico, que só lida com a etnia. O nacionalismo cívico oferece um quadro em que um movimento socialista e comunista pode avançar. A Ucrânia Ocidental é um bom exemplo do auto-destrutivo nacionalismo étnico.

Penso que este problema tenha dois níveis. Em primeiro lugar, as sociedades étnico-orgânicas devem ser salvas da ditadura modernista e nacionalista de tipo ocidental. O eurasianismo é precisamente isto: um Império tradicional, sagrado, religiosos e espiritual, baseado nas sociedades étnico-orgânicas tradicionais, contra o Estado-Nação burguês e contra a globalização (que é a universalização do padrão liberal em escala mundial). Neste primeiro nível, o nacionalismo étnico pode ser considerado como parte legítima da luta de libertação contra o imperialismo (é o caso da recente luta dos galeses e escoceses, que eu apoio totalmente).

Mais do que isso: eu considero legítima a vontade dos ucranianos de reafirmarem sua identidade étnica. Mas uma coisa é a afirmação da identidade e outra é criação de novos Estado nacionais burgueses que irão necessariamente oprimir as minorias étnicas. O Estado nacional (grande ou pequeno) não é solução.

Aqui chegamos ao segundo nível: sendo a luta pela identidade histórica e étnica legítima, a mesma deve colocada no contexto correto: este contexto deve ser Sagrado e Imperial e não nacional. O Império Russo era sagrado.

Eu penso que o mito do Sacro-Império do Rei Arthur pode ser considerado como um projeto Celta para a unificação escatológica da Europa Ocidental. Essa foi a ideia de Henrique VII (que foi completamente invertida por Henrique VIII). Assim, sugiro o Império do Dragão Vermelho como uma espécie de visão Pan-Céltica do grande espaço que deve superar o contexto do micro-nacionalismo étnico. O passado tem as suas raízes na eternidade e a eternidade é sempre nova e revigorada. Neste sentido, eu considero as narrativas do Rei Arthur e do Santo Graal como ontologicamente reais.

O Império Inglês foi Talassocrático e comerciante (a Nova Cartago) e, assim, foi anti-imperial, modernista, capitalista e racista. Foi incorreto não por ser Império, mas por ser anti-imperial. Contra ele, é preciso opor-se não só na luta étnica de libertação, mas também a partir de uma alternativa continental de um Império Telurocrático. Irlandeses, galeses e o povo escocês, bem como os Brettons e povo francês, devem criar sua própria versão céltica-imperial. Para tanto, figuras como o Rei  Ambigatos de Biturges ou do Rei Arthur podem ser tomadas como símbolos.

A assim chamada Primavera Russa não é nacionalista. É imperial e consiste em um reavivamento espiritual das raízes sagradas da nossa identidade (inclusiva e não exclusiva!) eurasiática. Nós somos a Terceira Roma e este é o nosso projeto escatológico. Não se trata de nacionalismo estreito ou de um novo tipo de imperialismo, mas de uma visão pluricêntrica que recusa o império global anglo-saxão e modernista e aceita a pluralidade dos espaços imperiais. Não queremos trocar o domínio americano por um russo. Lutamos por grandes espaços independentes: Eurasianano, Europeu, Céltico, Alemão, Norte-Americano, Sul-Americano, Muçulmano, Chinês, Indiano, Africano e assim por diante.

Então, em um primeiro nível: luta anticolonial de base étnica; em um segundo, a perspectiva positiva da multipolaridade baseada no conceito de pluralidade de Impérios Sagrados (grandes espaços).

4. A teoria do conhecimento de Mao, fundada no saber através de fazer (Sobre a Prática), bem como a sua Teoria da Contradição (Sobre a Contradição) e o marxismo-leninismo-maoismo ofertam uma via melhor para o conhecimento do que o conhecimento intuitivo de Heidegger através do ser.

Mao estava certo em afirmar que o socialismo não deve ser exclusivamente proletário, mas também camponês e com base nas tradições étnicas. Estava mais perto da verdade do que versão universalista e internacionalista industrial representada pelo trotskismo. No entanto, penso que a parte sagrada do maoismo foi perdida ou subdesenvolvida. Suas ligações com o confucionismo e o taoismo eram fracas. O maoismo é muito moderno para mim. A melhor solução para a China seria  preservar o socialismo e a dominação política do partido nacional-comunista (como é hoje), mas desenvolver mais as tradições sagradas (confucionismo e taoismo).
É bastante significativo que as ideias de Heidegger estejam sendo atentamente exploradas por centenas de cientistas chineses. Penso que Quarta Teoria Política caberia à China contemporânea melhor do que qualquer outra coisa.

5. O maoismo é a derivação de maior sucesso do comunismo no século XXI. O que você acha do marxismo-leninismo-maoismo desenvolvido pelo Presidente Gonzalo no Peru, de Ganapathy na Índia e de Jose Maria Sison nas Filipinas?

Todas estas lutas foram sínteses de lutas nacionais, e de classe, e são lutas patrióticas.

De modo geral, sou relativamente favorável a tais tendências: antiimperialistas, anticapitalistas e voltadas para a justiça social. No entanto, recuso o seu materialismo, universalismo e o seu progressismo. Elas poderiam se transformar em algo mais próximo da Quarta Teoria política. A QTP é baseada no Dasein e na Tradição. A QTP recusa a hegemonia ocidental e a modernidade. Poderíamos colaborar com esquerda e com a direita, com os maoistas ou com os evolianos, mas sempre visando uma nova perspectiva.

Uma última palavra.

Eu aprecio muito os galeses, irlandeses, a luta escocesa e Bretoniana pela afirmação da identidade Céltica Profunda. Sou admirador da cultura e história celta. Considero-as como um  grande tesouro da herança indo-europeu. Assim, penso que frente celta é parte muito importante da nossa luta comum.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Paul Gubarev - Sobre a “Primavera Russa” no Donbass: a luta por direitos democráticos e a justiça social:


Gênese da Ucrânia e dos ucranianos - Independência: ponto de bifurcação no caminho para a "Construção da Nação"

A Ucrânia é um enorme país multi-étnico para os padrões europeus. Situada em uma linha de ruptura entre a civilização ocidental e a civilização russa, a Ucrânia gerou uma grande quantidade de sub-grupos étnicos e de identidades que ou aceitam ou rechaçam certos elementos da cultura e da civilização dos povos vizinhos. Antes de 1939, os ucranianos formavam maiorias nos países vizinhos e, com frequência, foram perseguidos por motivos religiosos, étnicos ou culturais. A unificação final dos territórios ucranianos se deu somente durante a República Socialista Soviética da Ucrânia  até então, a autodeterminação dos "ucranianos" não havia recebido muita atenção; a generalização deste etnônimo teve lugar somente durante o período soviético da história da Ucrânia. 

Na Ucrânia, também foram adicionados territórios onde os ucranianos eram minoria – particularmente, o Donbass e a península da Crimeia. A unificação da Ucrânia coincidiu com o processo de crianção do Estado ucraniano, fundamentado na ideologia soviética: nos princípios do internacionalismo, da igualdade e da justiça social. Assim, as contradições entre as diferentes nacionalidades e etnias na Ucrânia se davam de forma amena, de modo que as diferenças entre os estilos de vida não tinham influência sobre a atitude dos ucranianos. Na ciência histórica soviética se desenvolvia o conceito de "povos irmãos" para os russos, ucranianos e bielorrussos. Evidentemente, existiam confrontações entre os diferentes grupos regionais dentro do país, no entanto, tal não afetava a identidade nacional. Esta situação mudou somente depois do colapso da União Soviética, devido à tendências centrífugas que provocaram o crescimento do nacionalismo ucraniano. 

A ideologia (nacionalista) da Ucrânia Independente só era relevante nas regiões ocidentais, assim como em Kiev, que queria seguir o rastro das tendências mundiais do ponto de vista informacional e político. Em consequência destes processos, aparecia na Ucrânia uma nova linha de cisão entre as regiões e suas divisões de classe. O nacionalismo tinha se convertido em uma nova ideologia das autoridades ucranianas e se dirigia tanto contra as minorias nacionais da Ucrânia, quanto contra os seguidores da ideologia anterior [soviética]. Ao mesmo tempo, as regiões ocidentais, devido a suas tendências ao nacionalismo e ao anticomunismo, se autodeclaravam como a "elite cultural", de modo que as regiões industriais (compostas por russos e majoritariamente de idioma russo) se transformaram em regiões de cidadãos de segunda classe. 

O conflito entre regiões poderia ter sido suavizado através de reformas direcionadas ao estabelecimento de uma certa autonomia regional. No entanto, tal ia de encontro a ideologia do "novo ucraniano", que tentava impor a todos uma única língua comum e uma única identidade comum. Exemplificando: na Ucrânia se propunha algo como o modelo da Alemanha unificada por Bismarck – muito embora não fossem levadas em conta as objeções sobre o perigo de se replicar semelhante modelo, em seus respectivos processos de desenvolvimento, na Ucrânia. O resultado deste processo de materialização do novo tipo de cidadão, que durou mais de vinte anos, se consolidou no Maidan de Kiev e acabou se transformando em uma espécie de gigantesca réplica a partir do qual teria de nascer o protótipo do "super-ucraniano", que encarnaria os ideais do projeto unitário.

Precisamente este modelo de unificação era inaceitável para os moradores do Donbass e da Crimeia, pois se tratava de uma maneira de destruir suas identidades regionais, étnicas e culturais. O levante antifascista no Donbass, que culminou na aparição da nova identidade nova-russa, foi dirigido contra o "super-ucraniano" e contra a nação ucraniana, sua cultura e sua condição de Estado.

O levante na Crimeia e no Donbass: uma luta por direitos democráticos:

A transição de uma sociedade soviética para uma sociedade pós-soviética se efetivou sob a insígnia da democracia e das liberdades civis  ainda que, na verdade, o processo de transição não tenha tido nada a ver nem com a democracia e nem com os direitos humanos. E não se tratou só da perda dos direitos civis fundamentais que as pessoas haviam conquistado na sociedade soviética, mas também dos direitos ao trabalho e a seguridade social: na sociedade pós-soviética, os seguidores da ideologia "incorreta" foram perseguidos. As ideologias "correta" e "incorreta" tinham trocado os papéis. 

Um comportamento muito estranho é o apresentado por parte da comunidade internacional, que advoga que os direitos humanos têm alguma relação com os recentes acontecimentos na Ucrânia. Os ativistas de direitos humanos, ucranianos e internacionais, defenderam o direito dos ativistas do Maidan de atacarem a polícia com artefatos pirotécnicos  de assaltar edifícios do governo e, inclusive, de utilizar estes edifícios como câmaras de tortura. Tudo isto, incluindo a tomada de delegacias de polícia e o saqueamento de armazéns, foi tido como protesto pacífico; qualquer tentativa de resistência por parte das autoridades provocava indignação nos ativistas de direitos humanos e era considerada como violação dos direitos humanos, enquanto que, simultaneamente, as forças que tomavam o poder em Kiev recebiam carta branca para o uso de qualquer forma de violência contra o leste do país. Os políticos europeus, estadunidenses e os meios de comunicação, que ontem mesmo se queixavam dos policiais que usavam granadas de efeito moral e balas de borracha contra os "rapazes", de repente passaram a fazer vista grossa para os crimes de guerra de verdade: bombardeios de escolas, hospitais e áreas residenciais no Donbass.

O desdém por parte da comunidade internacional dos direitos humanos e as violações de direitos civis desde o ponto de vista da conveniência estatal têm uma longa história na Ucrânia. Tudo começou com a aprovação da nova Lei da Política Linguística, que declarou o ucraniano como único idioma oficial do país (que é efetivamente bilíngue). A língua russa, junto a ucraniana, seguia sendo utilizada em todas as áreas do cotidiano: no trabalho, na educação, nos meios de comunicação e nos tribunais. Porém, na prática, isto foi ignorado. Os legisladores ucranianos insistentemente aprovavam leis inconstitucionais e regulamentos destinados a limitar o alcance da língua russa. Em primeiro lugar, na educação e na administração. Para tanto, as autoridades ucranianas excluíam da administração pública as regiões industriais e, simultaneamente, fortaleceram as instituições da desigualdade: o idioma russo na Ucrânia é a língua da classe média e da classe trabalhadora dos subúrbios e das grandes cidades, isto é, o idioma dos mais capacitados entre as massas sociais.

Não obstante, o movimento ucraniano dos direitos humanos ignorou por completo os direitos humanos e o aspecto social do problema linguístico, considerando a luta por direitos da população russa como mero irredentismo russo e separatismo. O resultado desta política foi a revolta da afirmação da cultura e da língua russa na Crimeia e no Donbass e a atualização do projeto da "Nova Rússia" como uma resposta a discriminação de anos. Entretanto, o Donbass (e a Nova Rússia em seu conjunto) segue sendo uma região multi-étnica. Somos plenamente conscientes da presença de um forte aspecto ucraniano na Nova Rússia e cremos que a proteção dos direitos é prioridade no processo de construção do Novo Estado. 

Objetivos sociais da "Primavera Russa":

O Donbass e, em geral, a Nova Rússia, são tradicionalmente regiões de trabalhadoras e sua história está indissoluvelmente atada a história da luta dos trabalhadores por igualdade e justiça social. Sua presença dentro de uma Ucrânia Independente provocou, para a industrializada Nova Rússia, não só uma discriminação por razões linguísticas e étnicas, como também e principalmente o colapso do Estado social. Nas primeiras etapas da independência da Ucrânia, o Donbass se converteu em um centro de protestos contra a criação e o fortalecimento das instituições das desigualdades sociais na Ucrânia pós-soviética. O rechaço ao modelo econômico socialista para a região se mostrou um desastre, a redução e o fechamento de empresas por falta de rentabilidade, o saque e o desmantelamento de fábricas para a sucata e o fechamento de minas são sem precedentes; retornava-se para os padrões de vida que existiam no capitalismo do século passado.

Como resultado, se formou um modelo criminoso e oligárquico no Donbass, que gerou poderosos clãs políticos. Estes clãs, em sua luta por influência em Kiev, se escondiam atrás do povo do Donbass, falando em seu nome. As elites locais ameaçavam a população da região com o crescimento do nacionalismo em Kev, proclamando-se como defensores dos interesses da população. Não obstante, como demonstraram os acontecimentos do ano passado, os políticos e oligarcas de Donetsk fracassaram em sua tarefa. Eles traíram o seu próprio povo com o fim de preservar sua parte do Capital, entregando o controle do país nas mãos dos nacionalistas radicais sem oferecer resistência. Como resultado, os mineiros, operários metalúrgicos e desempregados de Donetsk tiverem que defender seus direitos e liberdades pela via armada. 

O governo faltou com a proteção dos interesses do povo. Seu regresso ao Donbass e, com ele, o regresso a velha ordem, em nossa opinião, não tem sentido. Assim, o Donbass obteve a oportunidade única para construir um novo tipo de Estado, baseado nos princípios da justiça social e da igualdade.

terça-feira, 14 de junho de 2016

José Steinsleger - Che e o Peronismo:



Não são poucos os exegetas e detratores de Che que têm salientado que ele deixou a Argentina por causa da "ditadura peronista". A verdade é mais simples: o jovem ansiava por conhecer o mundo e foi em suas viagens, de motocicleta ou a pé, que ele aprendeu a ponderar a acerca do entusiasmo que o peronismo suscitava nos povos da América Latina em meados do século passado. No México, Che observou com atenção o golpe oligárquico que derrubou o governo de Juan Domingos Perón (setembro de 1955). Em particular, registrou um fato: a heroica e solitária defesa do deputado John W. Cooke, que resistiu a tiros a um ataque militar à sede do Partido Justicialista em Buenos Aires. Com a insubornável franqueza que o caracterizava, Che escrevera a Célia, sua mãe, comentando os acontecimentos de seu país: "Desta vez meus temores se consolidaram, ao que parece, caiu o seu odiado inimigo de tantos anos; por aqui, a reação foi rápida: todos os jornais do país e as chancelarias estrangeiras anunciaram jubilosos a queda do tenebroso ditador" 

 Mais adiante: "O Bispo do México se mostrou satisfeito com a queda de Perón e toda a gente católica e de direita, que conheci neste país, se mostrava igualmente contente, meus amigos. Mas eu não... confesso com toda a sinceridade que a queda de Perón me amargurou profundamente, não por ele, mas pelo que ele significava para toda a América Latina, pois, apesar do mal que te pesa e apesar da claudicação forçosa dos últimos tempos, a Argentina era uma paladina entre aqueles que consideram o Norte como inimigo" (24 de setembro de 1955)

 Cinco anos depois, o embaixador Ernesto Sábato lhe enviou uma mensagem de felicitação e comparou a revolução cubana com a revolução libertadora dos militares argentinos. Che respondeu: 

"Não poderíamos ser 'libertadores' porque não eramos parte de um exército plutocrático... e porque nossa bandeira de combate não era uma vaca"

 Segue: "Não podíamos ser 'libertadores' porque nossas serventes choraram de alegria no dia em que Batista se foi e no dia em que entramos em Havana; e hoje continuam nos mantendo informados sobre todas as manifestações e sobre todas as ingênuas conspirações da gente do estilo 'Country Clube' que você sabe que existem e que foram, por vezes, seus companheiros de ódio contra o peronismo"

 Segue: "Aqui, os modos da intelectualidade assumiram um aspecto muito menos sutil do que na Argentina. Aqui, a intelectualidade era escrava por coisa nenhuma, não disfarçava sua indiferença como lá e, tampouco, se disfarçava de inteligente. Era uma escravidão simplória posta a serviço de coisas vergonhosas" (Havana, 12 de Abril de 1960). 

 Neste sentido, os biógrafos, hagiógrafos e amigos do rigor teórico marxista muitas vezes passam desapercebidos pela extensa carta escrita a punha por Perón logo após o assassinato de Che na Bolívia: 

"É com profunda dor que recebi a notícia de uma irreparável perda para a causa dos povos que lutam por libertação..." 

 "Hoje caiu em luta, como um herói, a figura jovem mais extraordinária que deu sua vida a revolução na América Latina: foi morto o Comandante Ernesto Che Guevara. Sua morte me corrói a alma por que ele era um dos nossos - talvez o melhor: um exemplo de conduta, desprendimento, espírito de sacrifício, renúncia...". 

 "Sua vida, sua epopeia, são os exemplos mais puros a parto do qual se devem guiar os nossos jovens - os jovens de toda a América Latina...." 

 "Já me têm chegado notícias de que o Partido Comunista Argentino, prontamente, está em campanha para desprestigiá-lo. Algo que não nos surpreende, já que eles se caracterizam por sempre marcar na contramão do processo histórico nacional. Sempre têm se colocado contra os movimentos nacionais e populares. A cerca disto assinamos em baixo com peronistas..." 

 "As revoluções socialistas terão de se realizar: que cada um faça a sua, não importando o selo que carreguem..." 

 "O Peronismo, coerentemente com sua tradição e com sua luta, como Movimento Nacional, Popular e Revolucionário, rende sua homenagem emocionada ao idealista, ao revolucionário, ao Comandante Ernesto Che Guevara, guerrilheiro argentino morto em ação, empunhando armas em prol do triunfo das revoluções nacionais na América Latina" (Carta ao Movimiento Peronista, Madri, 24 de outubro de 1967)

 Na busca por um suposto anti-peronismo de Che, são muitos os que, todavia, insistem em confrontar este movimento nacional e popular com a revolução cubana. Porém, não há documento oral ou escrita que prove a teoria de um Che anti-peronista, assim como não há nada que indique que ambos os líderes se conheceram em Madri. Há, sim, dados curiosos: Eva Perón morreu em 26 de Julho, dia do ataque de Fidel ao quartel Moncada. Seu marido nasceu em 08 de Outubro, data da morte de Che.

 Che foi um combatente internacionalista que nunca negou sua identidade nacional. Em 20 de Junho de 1955, no sopé do Popocátepetl (cujo cume ele alcançou diversas vezes), alçou uma bandeira argentina em ocasião do Dia da Bandeira de seu país. Além do mais, morreu com o sonho de fazer a Revolução na Argentina.